24.7.05

Jean-François Revel

Ensaio sobre o Liberalismo
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Como Terminam as Democracias
Uma crítica actual aos órfãos da Praça Vermelha
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Seria salutar nestes tempos de cinismo socialista, lembrar os defensores do estatismo colectivista que foram eles os responsáveis pelas desgraças que se abateram sobre a Humanidade no século XX. Os socialistas e não os liberais foram os responsáveis por todas essas desgraças. Seria bom lembrar, desde logo, que os totalitarismos do século XX tiveram uma única fonte: o colectivismo socialista. Dessa raiz provieram as grandes ideologias que alimentaram o totalitarismo. O nacional-socialismo alemão não era nada mais do que uma forma nacionalista de socialismo coletivista. O mesmo podemos afirmar do fascismo de Mussolini. Os restantes intentos socialistas estão aí, com a variada gama de micro-modelos marxistas-leninistas, responsáveis pelas maiores massacres do século XX, como muito bem ficou ilustrado no livro de Stéphane Courtois, Nicolas Werth e outros, intitulado “O livro negro do comunismo”, já editado entre nós.
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Jean-François Revel (n. 1924), da Academia Francesa, é um dos mais lúcidos críticos liberais do estatismo na tradição política do seu país e na actual conjuntura internacional. O seu grande mérito consiste em lembrar a opinião pública dos riscos do colectivismo socialista, bem como do cinismo dos seus arautos. Revel é autor de clássicos do pensamento político como “Nem Marx, nem Jesus” (1970), “A tentação totalitária” (1976), “A nova censura” (1977), “Como acabam as democracias” (1983, obra vencedora dos prémios Aujurd'hui e Konrad-Adenauer), “A rejeição do Estado” (1984), “O terrorismo contra a democracia” (1987), “O conhecimento inútil” (1988, prémios Chateaubriand e Jean-Jacques Rousseau), “O reencontro democrático” (1992, prémios Ville d'Ajaccio e Mémorial), “O absolutismo ineficiente”, ou “contra o Presidencialismo à moda francesa” (1992) ou Final do século das sombras (1999), bem como uma obra-prima de crítica à ideologia socialista: A grande parada: ensaio acerca da sobrevivência da utopia socialista (Paris: Plon, 2000, 344 ps.), e o último “A obsessão anti-americana” (Paris, Plon, 2002). O seu penúltimo livro causou polémica nos meios intelectuais do Velho Mundo e é, com certeza, a par do seu livro sobre o anti-americanismo, em decorrência da denúncia que o autor faz da capacidade que os defensores do socialismo têm para encobrir a realidade com o véu da ignorância, em que pese o facto de o mundo comunista ter desabado no leste europeu há mais de uma década. A França, aliás, é caracterizada por Revel com palavras que poderiam muito bem ser aplicadas a Portugal: "Devo dizer que, entre os países que sempre escaparam do comunismo mas onde a ideologia totalitária permanece forte, tanto no debate das ideias quanto pelo seu peso na prática política, a França ocupa um dos primeiros lugares, senão o primeiro. Ela constitui na Europa uma espécie de laboratório de ponta na produção das espertezas serôdias destinadas a rejeitar ou a tornar inócuas as lições da experiência, ou a adoptá-las com um atraso e uma má vontade tais que terminam por volatilizar os benefícios da aceitação da verdade" (p. 31/32). O autor retoma, assim, a crítica feita por Tocqueville, em O Antigo Regime e a Revolução, à capacidade mistificadora dos filósofos franceses, que no final do século XVIII substituíram alegremente o conhecimento da complexa realidade social por fórmulas gerais e simplórias, fáceis de serem vendidas ao povo nos panfletos e nas tribunas. A consequência dessa insensatez é por todos conhecida: a guilhotina e o terror jacobino, de que foram vítimas os próprios ideólogos do caos. Em 14 contundentes capítulos Jean-François Revel desossa, com precisão cirúrgica, o cadáver do dinossauro retórico com que os intelectuais socialistas têm tentado, ao longo do último decénio, dar vida ectoplasmática ao apodrecido paquiderme do socialismo real. O cerne da ressurreição ideológica da utopia socialista pode ser resumido, segundo a exposição de Revel, nas seguintes considerações:
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1) Já que o socialismo totalitário de carne e osso está morto e sepultado pelas suas antigas vítimas no leste europeu, os intelectuais ocidentais defensores desses ideais, em lugar de reconhecerem a falência do arquétipo dos seus sonhos, passaram a dar-lhe vida utópica, afirmando que se o comunismo tinha desaparecido da Europa, morreram com ele também as esperanças da humanidade de ver concretizada a justiça social.
2) Para esses intelectuais, já que a retórica liberal se estruturou, ao longo do século XX, em contraposição ao comunismo, desaparecido este não faz mais sentido mantê-la.
3) Responsável fundamental pela pobreza dos países do leste europeu e do terceiro mundo é, segundo os socialistas pensantes, o capitalismo e a sua superestrutura ideológica, o liberalismo.
4) O binómio capitalismo/liberalismo também é, para eles, o responsável pelo fim dos anos dourados do welfare state na Europa Ocidental e nos Estados Unidos.
5) A “inteligentsia” socialista é, no mundo globalizado por obra e graça do demónio capitalista, a portadora da única mensagem de esperança para a Humanidade no novo milénio; a sua pregação consiste em afirmar que o comunismo é a etapa suprema da democracia.
6) Posto que os Estados Unidos são o grande motor do capitalismo mundial, parte essencial da pregação dos novos messias consiste em denegrir a imagem dessa sociedade alimentando o espírito anti-americano.
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Embora seja bastante simplório o arrazoado dos intelectuais socialistas, a desinformação por eles propalada, no sentir de Revel, tem conseguido ocupar espaços na imprensa e estender um cordão de isolamento contra aqueles que ousarem divergir do seu ponto de vista. O próprio Revel confessa ter sido vítima, em França e nos Estados Unidos, da “censura” ideológica dos órfãos da Praça Vermelha e daqueles que, não sendo socialistas militantes, sentem-se contudo presos pelo imperativo categórico do politicamente correcto.
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Esse facto constitui, no sentir do autor, uma prova da lentidão do progresso da liberdade de espírito no mundo contemporâneo. "Uma grande parte de intelectuais, frisa Revel, persistem em perguntar-se, antes de mais nada, não o que devem pensar, mas o que se vai pensar deles" (p. 54). Esta situação constitui, a meu ver, uma verdadeira inversão da ética de convicção weberiana que deveria animar o intelectual, defensor antes de mais nada da verdade custe o que custar, sem esperar pelos aplausos da plateia. Ou melhor, estamos diante de uma inversão dos papéis com o político, que deve agir calculando os resultados da acção.
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Isso não quer dizer que a política tenha permanecido estática. A política mudou, e está a mover-se na direcção correcta. Na década de 90, as tarifas diminuíram, e permaneceram mais baixas do que eram anteriormente. Entretanto, tem havido um enfâse excessivo nos consumidores nacionais em detrimento do ímpeto contínuo necessário para realizar a integração bem sucedida dos mercados mundiais. Parte disso foi consequência natural das taxas de câmbio que permaneceram com tendência para a sobrevalorização em vez de a subvalorização.
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Jean-François Revel parte para desmascarar a falsidade do discurso ideológico da esquerda, explicitando, em primeiro lugar, os seus interesses e, em segundo lugar, mostrando quem foi que resolveu em França a questão social. No que diz relação ao primeiro ponto, Revel escreve: "A defesa de estatutos protegidos e, digamo-lo claramente, o reforço dos privilégios, converteram-se nas principais causas do que a esquerda ousa ainda chamar de movimentos sociais, que na verdade não são mais do que anti-sociais" (p. 54). Quanto ao segundo ponto, Revel não duvida em afirmar que foram os liberais os que em França enfrentaram e equacionaram a questão social, no século passado. A respeito, afirma: "Dezenas de anos antes da aparição dos primeiros partidos comunistas, foram os liberais do século dezenove os que colocaram, antes de qualquer um, o que se chamava então a questão social e responderam-lhe, elaborando muitas leis fundadoras do direito social moderno. Foi o liberal François Guizot, ministro do rei Luís-Filipe que, em 1841, fez votar a primeira lei destinada a limitar o trabalho das crianças nas fábricas. Foi Frédéric Bastiat, esse economista genial que hoje seria alcunhado de ultraliberal desenfreado, que em 1849, sendo deputado na Assembleia legislativa, interveio precursoramente na nossa história para formular e exigir que fosse reconhecido o princípio do direito de greve. Foi o liberal Émile Ollivier que, em 1864, convenceu o imperador Napoleão III de abolir o delito de coligação, (associação), (sindicalismo), (ou seja, a proibição que impedia os operários de se agruparem em defesa dos seus interesses), abrindo assim o caminho para o futuro sindicalismo. É o liberal Pierre Waldeck-Rousseau que, em 1884, no início da Terceira República, fez votar a lei que reconhecia aos sindicatos a personalidade civil. Permita-se-me sublinhar a seguinte lembrança: os socialistas da época, de acordo com a sua lógica revolucionária (bem anterior à aparição do mais pequeno partido comunista) manifestaram uma violenta hostilidade contra a lei Waldeck-Rousseau" (p. 48).
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O remédio para as trapalhadas socialistas é simples, mas deve ser corajoso e rápido. No sentir do autor, a única atitude válida é a integridade moral dos intelectuais sensatos para denunciar, sem temor, essa tentativa de estelionato utópico, à maneira como Benjamin Constant de Rebecque pôs a nu, no início do século XIX, os doidos e proto-socialistas arrazoados de Rousseau em política e em economia, ou seguindo as pegadas de Tocqueville na defesa incondicional e constante da liberdade ameaçada pelo igualitarismo estatizante. (...)
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(Jorge Pereira da Silva)